O teatro como lugar de resistência
Teuda Bara em cena de Nós, manifesto contra as infâmias
Na quarta-feira 31 de agosto, dia do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, faltava cerca de meia hora para o início da peça Nós, quando
as imediações do Teatro Sesc Consolação, em São Paulo, se transformaram
em praça de guerra. Intoxicados por nuvens de gás lacrimogêneo,
manifestantes perseguidos pela polícia encontraram refúgio nas portas
abertas do teatro. Naquele momento, a acolhida dada pela instituição,
por atores e equipe de produção do mineiro Grupo Galpão, cujo espetáculo
só começou após a saída em segurança de todos os participantes do
protesto, concretizou a metáfora do teatro como lugar de resistência.
Pouco depois da cena bélica ocorrida fora,
outras batalhas assomaram ao palco. Quando aceitou o convite do Galpão
para uma parceria, o diretor Marcio Abreu propôs a criação coletiva de
um espetáculo político. Queria encenar as inquietações de cada ator,
buscava extrair as reações individuais a pressões de toda ordem e pedia a
cada intérprete condensá-las num manifesto.
As reuniões começaram em 2014, muito
antes de o cenário político se transformar num pesadelo protagonizado
por uma farsa. E eis que questões abordadas na dramaturgia de Nós, referência tanto a cada um como aos entraves sociais, tornaram-se incrivelmente atuais.
“Quando criamos o espetáculo, o golpe
estava longe”, diz a mineira Teuda Bara, figura fundamental do Galpão,
companhia que ajudou a fundar e caminha para 34 anos de existência.
“Assim que o diretor nos instigou a pensar sobre nossa responsabilidade
acerca de questões políticas que nos incomodam, perdi o sono e o
sossego. Muitos são os incômodos, a falta de liberdade, a solidão
urbana, o racismo, a intolerância, a violência, a corrupção, o machismo,
o preconceito.”
A atriz se pôs a refletir sobre a
interminável lista de absurdos a assaltar a humanidade todos os dias.
Primeiro pensou em falar sobre a calamidade das 276 meninas sequestradas
e mantidas em cativeiro na Nigéria, em 2014. “Ninguém faz nada.” Depois
uma tragédia ambiental e humana local se impôs. O rompimento criminoso da barragem da mineradora Samarco deixou-a indignada. Parecia claro que a lama não se limitava à que soterrou a histórica Mariana.
Aos 75 anos e desde
os 20 no teatro, Teuda participou de muitas manifestações contra a
ditadura na década de 1960. “Fui em tudo quanto era protesto, torci
tornozelo ao fugir de bomba, pedra, cavalo, fui às missas do Frei
Betto.” Nascida em família tradicional, pai severo a sonhar com a filha
como fina dama da sociedade e mãe a querê-la religiosa de convento,
decidiu transgredir.
“Não tinha outro jeito.” Abraçou a causa
hippie, trocou o curso de Ciências Sociais na Universidade Federal de
Minas Gerais pelo teatro, teve dois filhos e se negou a casar e recusou
convite do próprio Chacrinha para integrar o elenco do programa com a
seguinte explicação: “Não posso, sou comunista”.
Como muitos outros colegas de ofício, no
auge da repressão enfrentou o constrangimento de representar para os
censores. “Sabe o que é ter de fazer uma comédia para eles darem o aval
ou não? Fazer gracinha para o censor e ouvir coisas como ‘esse figurino
não pode, aquela fala não pode’, isso na véspera do espetáculo. E
caminhamos para isso. Essa história de o filme Aquarius ser classificado para maiores de 18 anos é censura (uma semana depois da decisão polêmica, o Ministério da Justiça voltou atrás). É assim que começa.”
Em Nós, cuja dramaturgia foi construída em torno de
seu personagem, Teuda revive parte do clima de revolta dos anos de
chumbo ao se unir a outras vozes a se indagar sobre o modo como a
sociedade adoeceu a ponto de cometer e permitir descalabros como o
assassinato de cinco meninos negros, fuzilados dentro de um carro por
PMs do Rio de Janeiro em 2015. Na condição de cidadã, revolta-se com a
violência da polícia contra os manifestantes a gritar “Fora Temer” Brasil afora. “O cara sendo espancado, a moça que perdeu o olho, temo que tudo isso possa degringolar ainda mais.”
Da plateia do Tucarena, Elias Andreato observa os testes de luz para Esperando Godot,
que acaba de estrear e cuja temporada vai até 27 de novembro. No palco,
as setas de um relógio fictício a tiquetaquear silenciosas a passagem
do tempo. O ator de 61 anos de idade e 45 de carreira reflete sobre a
atual fase conturbada e traça um paralelo com as questões propostas pela
grande obra do irlandês Samuel Beckett nos anos 1950.
“Quando se vive um momento político e
social com este impacto, você repensa seu papel de artista. Talvez meu
papel não esteja no discurso, na rua. Talvez minha contribuição se dê
por meio de meu ofício, da minha arte.” Ao artista, diz, cabe ficar
atento e pensar o mundo do ponto de vista humano e do mais fraco,
sempre. “Se temos essa sensibilidade, se estudamos o homem, temos de
usá-las para isso.”
Andreato ainda não havia encenado Godot
por completo, somente fragmentos. Na montagem atual, enfrenta o desafio
e colhe a satisfação de atuar e dirigir, condição na qual tem de sair
de si mesmo para valorizar o outro. Ele vê nisso uma beleza revestida de
generosidade aprendida no convívio teatral. “É lindo ver o outro
brilhar.”
Ao lado de Claudio Fontana, no papel de
Vladimir, ele é Estragon, ambos a esperar por alguém ou algo que talvez
jamais venha, talvez não exista, talvez tenha passado e ninguém notou.
Os figurinos de Gabriel Villela, ao avesso, são referência ao interior
dos personagens.
Uma das grandes questões a demonstrar a
atemporalidade do texto se manifesta quando entram em cena Pozzo
(Raphael Gama) e Lucky (Clovys Torres), patrão e empregado. “Pozzo é
esse personagem poderoso que traz o outro na coleira, submisso, a quem
só é permitido pensar quando lhe colocam um chapéu. É um pouco do que
vivemos, desse sistema capitalista que gera tudo em razão do poder, esse
jogo social violento vinculado a uma camada da sociedade a nos
manipular o tempo todo. Essas relações não mudam e por isso Godot é pertinente sempre.”
O diretor, que do mesmo modo como
Teuda foi forçado a fazer espetáculo particular para censor, participou
de passeatas contra o regime autoritário e experimentou frustração e
revolta diante da censura a muitos espetáculos, entre os quais à peça Artaud, o Espírito do Teatro
(José Rubens Siqueira), cujo elenco integrou em 1984, enxerga a
sociedade atual como mais organizada e fortalecida. “Ao menos é possível
se manifestar, discutir a questão da violência policial. Na ditadura
isso não acontecia.”
Depois de levar ao palco O Sonho de um Homem Ridículo e O Grande Inquisidor, Celso Frateschi completa a Trilogia do Subterrâneo, de Fiódor Dostoiévski, com o monólogo O Subsolo, inspirado em Memórias do Subsolo, do escritor russo.
No intimismo do Espaço Ágora, o ator e dramaturgo
incorpora o homem ressentido que culpa o mundo de tudo, se culpa e
mostra sem pudor seus instintos em choque com a sociedade. “Talvez este
texto nos ajude a explicar a relação com essa atitude fascista para a
qual caminha nossa sociedade, formadora desse caldo autoritário.
Dostoievski vai fundo nessas áreas da existência e na relação com o
poder.”
Segundo Frateschi, os
recentes acontecimentos na política tornaram o texto de uma
contemporaneidade assustadora. “Não imaginávamos que as frases fossem
ecoar de forma tão violenta.” Ele considera função primordial do teatro constituir-se espaço privilegiado para o debate de ideias,
lume a abrandar a escuridão. “Vivemos momentos tristes nos quais o
teatro foi um local de resistência que permitiu a discussão mais livre,
mais aberta, de forma mais contundente.”
Hoje, acredita, novamente o teatro é instrumento para a construção de um conhecimento específico. “De alguma forma, O Subsolo
nos mostra o embate entre a pulsão animal e a civilização. A direita
apela para esse impulso mais emocional porque é fácil estimular o ódio,
ele está na nossa ancestralidade, enquanto controlá-lo é um processo
civilizatório difícil. Eliminar o outro como forma de acabar com o
problema é algo muito estimulado pela mídia e pelos discursos de quem
usurpou o poder.”
*Publicado originalmente na edição 919 de CartaCapital, com o título "Um lume na escuridão". Assine CartaCapital.
Com a cartacapital.com.br
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