Bondade não surge só da fé. Conheça histórias de bons samaritanos ateus
Uma das passagens mais conhecidas da Bíblia, a parábola do bom
samaritano descreve um episódio narrado por Jesus no Evangelho de Lucas
(10: 25-37). Na história, um homem é atacado por ladrões que o espancam e
o deixam, nu e quase morto, na estrada. Por ali passam primeiramente um
sacerdote e um levita, homens dedicados à religião, que fingem não ver o
ferido. O terceiro a vir pela estrada é um samaritano. É ele quem
socorre o desconhecido, cuida dele, o leva a uma hospedaria e paga a
conta. O trecho é tão famoso que “bom samaritano” virou um sinônimo de
pessoas que fazem o bem.
Erika, Leonardo e Wendell são bons samaritanos. Além da disposição
para ajudar desconhecidos, eles têm em comum o fato de serem ateus. E,
justamente por isso, se acostumaram a lidar com o espanto das pessoas.

Erika Kodato dá aulas de reforço e outras atividades para crianças que esperam uma casa. Foto: Edu Cesar
1/12
“Acreditar em Deus é um sentimento. Algumas pessoas têm, outras não"
“Como uma pessoa tão boa como você não acredita em
Deus?”. Esta é uma pergunta que a professora Erika Kodato, 40 anos, ouve
com frequência. Ateísta, ela vai toda semana a um abrigo de menores à
espera de adoção para dar não só aulas de reforço escolar, mas também
carinho de mãe. “Se você é ateu, não esperam de você atitudes de
solidariedade. É como se você fosse uma pessoa individualista ou
materialista simplesmente porque não crê em Deus”, diz ela.
Na entidade Casa São José, em Arujá (SP), Erika trabalha
com sete crianças entre 7 e 14 anos. Além do carinho, beijos e abraços, a
professora auxilia nas dúvidas da lição de casa, ensina origami e faz
atividades para desenvolver o apredizado. “É uma espécie de reforço
escolar mais individualizado. As crianças geralmente têm pai e mãe para
fazer isso, mas estas não têm”, explica.
Erika é ateísta desde sempre. O avô e o pai dela também eram ateus,
assim como três filhos da professora. Para ela, é muito natural não
crer em uma entidade divina. Mas Erika entende que isso soa estranho em
um país tão católico como o Brasil. “Até eu me pego usando expresões do
tipo ‘graças a Deus’. Faz parte da nossa cultura”, conta, bem-humorada.
Embora o ateísmo já seja uma opção natural na família, ela diz que
não ficaria chateada se um dos filhos decidisse seguir uma religião.
“Vou achar legal, sinal que dei a eles liberdade suficiente para fazer o
que quiserem. Acreditar em Deus é um sentimento. Algumas pessoas têm,
outras não”.
Além do trabalho que faz na entidade, Erika também é expert em
incentivar outras pessoas a se tornarem voluntárias. Professora de
geografia em uma escola particular de Arujá, ela organiza visitas
mensais dos alunos adolescentes ao abrigo, para fazer brincadeiras e
contação de histórias. Ela também convenceu o professor de pilates a dar
aulas regulares para as crianças. “A única coisa que digo é: se
começou, tem que fazer pra sempre, porque eles se apegam mesmo”, conta.

Leonardo Dallacqua, à frente do grupo, em uma palestra do Instituto Zimbabuê
Um ateu em favor do candomblé
“
O caráter e a ética são o que faz você se doar ao outro, não a espera de uma recompensa divina
Também ateu, o historiador Leonardo Dallacqua de
Carvalho, 25 anos, não vê cor, raça ou religião na hora de ajudar o
próximo. Voluntário no Instituto Zimbauê, onde realiza principalmente
palestras contra o preconceito racial, ele trabalha com temas
relacionados à cultura negra – inclusive na defesa de religiões
afro-brasileiras, como o candomblé. “O objetivo deste projeto é dar um
espaço igualitário para esta religião. Meu papel, mesmo não acreditando
em Deus, é buscar um espaço para que todos vivam em harmonia, onde os
preceitos não sejam livros sagrados, mas a constituição brasileira”,
diz.
Além deste trabalho realizado na cidade de Assis, interior de São
Paulo, onde mora atualmente, Leonardo também faz parte da ONG Ágora, em
Cândido Mota. Lá, ele dá aulas para adolescentes carentes em um cursinho
pré-vestibular gratuito. “A intenção é ajudar pessoas que não têm
recursos a ter uma educação com mais qualidade”. O professor Leonardo
entra em ação todos os sábados, dando aulas de história e geografia para
cerca de 40 jovens.
De família cristã, Leonardo se tornou ateu por convicção. “Sempre
digo que a ética e o caráter são o que faz você se doar ao outro, não a
espera de uma recompensa divina. O ateu acredita apenas na bondade”,
esclarece.
Curiosamente, Leonardo também chegou a dar aulas de educação
religiosa na rede pública. “Eu ensinava a história das religiões de
maneira igualitária e sem posições ideológicas”, diz ele que defende que
este tipo de aula deve ser facultativo.
Solidariedade nas favelas

Wendell da Costa Nascimento: depois de incêndio em favela, mobilização para arrecadar roupas e mantimentos
“
As pessoas ficam impressionadas e me perguntam como um ateu pode fazer isso
A notícia de um incêndio na Favela do Moinho, no centro
de São Paulo, em dezembro de 2011, despertou em Wendell da Costa
Nascimento o desejo de ajudar os mais carentes. Na época com 18 anos, o
técnico em informática se sensibilizou com a situação dos moradores após
a tragédia. “Resolvi arrecadar roupas e alimentos entre os amigos e
levei tudo para lá”, conta Wendell, que é ateu.
O ato voluntário que ajudou cerca de 30 famílias foi o primeiro
passo para que o trabalho fosse mais regular. Meses depois, Wendell
organizou mais uma ação em favela, desta vez no bairro de Itaquera,
também em São Paulo, após uma enchente, em 2012, quando novamente levou
roupas e mantimentos.
Além do trabalho focado nas favelas, Wendell também participa de
mutirões para distribuir comida a moradores de rua e ajuda na
organização de shows beneficentes em prol de instituições de caridade.
Para ele, o fato de não acreditar em Deus não o impede de praticar a
caridade. Wendell diz que muitas vezes as pessoas veem com desconfiança
o trabalho realizado, mas isso não o aborrece. “Elas ficam
impressionadas e me perguntam como um ateu pode fazer isso”, relata.
Wendell enfrentou um certo desconforto na própria família ao se
tornar ateu, há dois anos. Apesar de os pais não terem religião, eles
sempre foram muito crentes em Deus. “Minha mãe se assustou um pouco, mas
fui explicando que são minhas atitutes que mostram quem eu sou
realmente”, conta. “Eu faço este trabalho porque me incomoda ver tanta
desgraça, e quero fazer algo para melhorar a vida dessas pessoas, dar
esperança a elas. Isso me deixa feliz”, conclui o jovem.
iG





Nenhum comentário: