De Chris a Kristin: Soldado de elite americano relata mudança de gênero
Kristin Beck assumiu-se como transgênero após 20 anos no Navy Seals
Chris Beck trabalhou 20 anos no Navy Seals, um
comando especial da Marinha dos EUA que frequentemente faz operações
secretas em territórios inimigos. Mas ao longo desse período o oficial
guardava um segredo pessoal: desde a infância, ele sentia que era uma
mulher nascida em um corpo masculino.
Como oficial altamente condecorado da Marinha, o mundo de Beck era
duro, machista e às vezes violento. Ele participou de missões sigilosas
no Pacífico e no Oriente Médio, inclusive durante a Guerra do Iraque.
Mas, em fevereiro passado, mais de um ano após sua aposentadoria da
Marinha, ele trocou sua foto em seu perfil no LinkedIn pela de uma
mulher alta, morena, com uma blusa branca, sorrindo diante de uma
bandeira americana. E escreveu: "Tiro agora todos os meus disfarces e
mostro ao mundo minha verdadeira identidade como mulher".
Chris se tornou Kristin.
Enquanto esperava pela reação de seus antigos colegas de trabalho, Kristin sabia que sua decisão não tinha volta.
Códigos
Os oficiais do Navy Seals participam de algumas das missões
militares mais difíceis e perigosas do mundo (uma das unidades em que
Kristin trabalhou, por exemplo, foi responsável pela missão que matou
Osama Bin Laden no Paquistão, em maio de 2011) e têm, entre si, um
código de lealdade, integridade e confiança.
Kristin temia que seus ex-colegas a acusassem de desonrar esse código por assumir-se como transgênero.
Alguns tiveram dificuldades em aceitar a decisão dela, mas as respostas que ela recebeu foram, em sua maioria, positivas.
"Muitos deles disseram 'Kris, não entendo o que você está passando
agora, mas sei da sua história", ela conta à BBC. "Meus 'irmãos' do Navy
Seal disseram, 'você fez um ótimo trabalho de campo nos últimos 20
anos. Não te entendo, mas te apoio 100% e espero aprender mais a
respeito (do que você está passando) e te ver no próximo encontro."
Sabendo que a notícia rapidamente espalharia, Kristin decidiu
contar sua própria história antes que alguém fizesse isso para ela.
'Três vidas'

Nas Forças Armadas, Kristin (ainda Chris) trabalhou em missões complexas
Ela é coautora do livro Warrior Princess: A US Navy Seal's Journey to Coming Out Transgender
(em tradução livre, "Princesa Guerreira: A Jornada de Uma Navy Seal em
se assumir Trangênero"), com Anne Speckhard, professora de psiquiatria
da Universidade Georgetown, em Washington.
O livro aborda sua infância em uma família religiosa e socialmente
conservadora, suas tentativas de suprimir sua identidade de gênero - ela
secretamente comprava roupas femininas e depois as jogava fora - e seus
dois casamentos, que fracassaram.
"Eu estava vivendo três vidas", diz Kristin. "Tinha uma vida
secreta com minha identidade feminina, minha vida secreta com os Seals e
minha vida em casa, que eu compartilhava com minha mulher, filhos, pais
e amigos. As pessoas viam fragmentos de mim, mas, em geral, ninguém
realmente me conhecia."
As operações especiais ocorridas após os atentados de 11 de
Setembro, combinadas com uma vida emocional "totalmente esmagada"
fizeram com que Kristin desenvolvesse estresse pós-traumático.
Ela contou que, por anos, lidou com o impacto psicológico de "tanta
morte, tanta dor" recorrendo a "cerveja, motos e mais cerveja".
Mas o fato de assumir-se como transgênero teve um "impacto
dramático" em seus sintomas de estresse. "Não sinto tanta raiva e durmo
melhor, simplesmente porque estou mais feliz", relata. "Muitas pessoas
me disseram, 'pela primeira vez estou vendo você sorrir'."
'Não pergunte, não conte'

Navy Seals são parte de algumas das missões mais perigosas das Forças Armadas
O fim da política "don't ask, don't tell" ("não pergunte, não
conte"), em 2011, pôs fim ao veto a pessoas abertamente homossexuais nas
Forças Armadas americanas. Mas essa mudança não se aplicou a
transgêneros, que ainda podem ser dispensados se descobertos.
Kristin, por sua vez, defende que oficiais transgêneros possam ser realocados dentro das Forças Armadas.
"É uma condição humana", argumenta. "Os militares têm de olhar além
do gênero e ver pessoas como eu como indivíduos, não apenas feminino ou
masculino, e entender que eu ainda posso fazer um bom trabalho. Posso
não conseguir fazer todas as tarefas de antes, mas posso fazer algo
diferente - ser analista de inteligência ou oficial de segurança em
postos de checagem."
"Ninguém é perfeito", prossegue. "Não sou Conan o Bárbaro, nem sou a Barbie. Somos todos diferentes."
Kristin diz agora que abraça seu novo papel como porta-voz não
oficial da comunidade transgênero com o mesmo "espírito guerreiro" de
sua carreira militar.
"Recebi e-mails comoventes de pessoas presas a ambientes de dor e
preconceito, e (ajudá-las) faz com que tudo valha a pena", conta.
"Também recebi e-mails de heterrossexuais dizendo, 'obrigada por seu
trabalho (na Marinha). Nunca entendi (o que você passou), mas agora
entendo'."
"O medo do desconhecido é o maior problema", agrega Kristin. "Não vou machucar ninguém e não sou contagiosa. Sou apenas eu."
BBC Brasil
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