Nos EUA, pais usam internet para abandonar filhos adotados no exterior
Nenhuma outra medida foi tomada pelas autoridades do Illinois, Wisconsin ou Nova York.
Todd e Melissa Puchalla enfrentaram muitas
dificuldades por mais de dois anos para criar Quita, uma adolescente
problemática que haviam adotado, vinda da Libéria. Quando decidiram
desistir da garota de 16 anos, descobriram em menos de dois dias novos
pais adotivos, por meio de um anúncio na internet.
Nicole e Calvin Eason, um casal do Estado de Illinois, na casa dos 30
anos, respondeu rapidamente. Em e-mails, Nicole Eason garantiu a
Melissa Puchalla que ela poderia lidar com a menina. "As pessoas que
estão ao meu redor acham que eu sou incrível com as crianças", escreveu
Eason.
Algumas semanas mais tarde, em 4 de outubro de 2008, os Puchalla se
dirigiram de Westville, no Estado do Wisconsin, para a casa de Eason, em
Illinois. A transferência ocorreu num parque para trailers, o Country
ires Mobile Home Park, onde o casal vivia.
Não estavam presentes promotores ou autoridades de serviços de apoio a
crianças. Os Puchalla simplesmente assinaram um documento autenticado
declarando esses virtuais estranhos como guardiões de Quita. A visita
durou algumas horas. Foi a primeira e a última vez que os casais se
encontraram.
Para Melissa Puchalla, os Eason "pareciam maravilhosos". Se ela os
tivesse examinado com cuidado, poderia ter descoberto o mesmo que a
Reuters:
* As autoridades de proteção à infância haviam retirado os dois
filhos biológicos de Nicole Eason anos antes. Um vice-xerife escreveu
que o casal tinha "tendências violentas".
* O único documento oficial afirmando suas habilidades como pais -um
deles supostamente redigido por uma assistente social que havia
inspecionado a casa dos Easons- era falso, criado pelos próprios Easons.
* Nicole Eason e um outro homem, Randy Winslow, pegaram um menino de
10 anos anunciado na internet em 2006. Depois, Wislow foi preso e agora
cumpre pena de 20 anos em um presídio federal por enviar e receber
pornografia infantil.
Na primeira noite de Quita com os Eason, seus guardiões lhes pediram
que fosse para a cama com eles, diz hoje a própria Quita. Os Easons
dizem que nunca compartilharam sua cama com qualquer das crianças que
levaram, mas Quita lembra claramente disso. Nicole, diz ela, dormia nua.
Dias depois de deixarem Quita com o casal, Melissa Puchalla não
conseguiu mais entrar em contato com os Eason e não tinha nenhuma ideia
do que havia acontecido com a menina. Passaram-se duas semanas até que
as autoridades a localizassem, tirassem-na dos Eason e a devolvessem
para o Wisconsin -sozinha, em um ônibus.
Nenhuma outra medida foi tomada pelas autoridades do Illinois, Wisconsin ou Nova York.
Mercado clandestino
Quando chegou aos Estados Unidos, Quita pensou que "estava indo para um lugar mais legal, um lugar seguro. Mas não era nada disso", diz ela hoje. "Passou a ser um pesadelo."
A adolescente havia sido jogada no mercado clandestino da adoção de
crianças nos EUA, uma rede na internet, sem nenhum controle, onde pais
desesperados buscam um lar para crianças que se arrependem de ter
adotado. Como Quita, hoje com 21 anos, essas crianças descartadas são
com frequência vítimas de adoções internacionais que não deram certo.
Por meio de grupos no Yahoo e Facebook, pais e outras pessoas
anunciam crianças rejeitadas e depois as entregam a estranhos com pouco
ou nenhum escrutínio do governo, algumas vezes ilegalmente, conforme
constatou uma investigação da Reuters.
É um mercado amplamente ilegal no qual as necessidades dos pais são
postas à frente do bem-estar dos órfãos que eles trouxeram para os EUA.
Uma autoridade do governo alertou funcionários dos serviços de
proteção às crianças em todos os EUA que a prática está "colocando
crianças em grande risco". Mesmo assim, não há leis especificamente
voltadas para isso, e nenhum órgão governamental monitora os avisos na
internet.
A prática é chamada de "private re-homing" (recolocação particular),
um termo tipicamente usado por proprietários em busca de novos lares
para seus animais de estimação. Com base em solicitações postadas em um
de oito quadros de avisos desse tipo na internet, os paralelos são
impressionantes.
"Nascido em outubro de 2000 --este lindo menino, 'Rick' veio da Índia
um ano atrás e é obediente e ávido por agradar", diz um anúncio.
Uma mulher que diz ser do Estado de Nebraska oferecia um menino de 11
anos que ela havia adotado da Guatemala. "Estou totalmente envergonhada
por dizer isso, mas nós realmente odiamos este menino", escreveu ela em
julho de 2012.
A Reuters analisou 5.029 postagens de um período de cinco anos em um
quadro de avisos na internet, num grupo do Yahoo. Em média, uma vez por
semana havia um anúncio de oferta de criança para "recolocação". A
maioria dos pequenos tinha idades de 6 a 14 anos e havia sido adotada de
outros países, como Rússia, China, Etiópia e Ucrânia. O menor estava
com 10 meses. Um participante se referiu aos fóruns de "recolocação"
como "fazendas nas quais se selecionam crianças".
Um menino de 10 anos das Filipinas e outro de 13 anos do Brasil foram
anunciados três vezes. O mesmo ocorreu com uma garota do Haiti,
oferecida para "recolocação" aos 14, 15 e 16 anos.
"Eu a teria entregue a um serial killer, de tão desesperada que eu
estava", escreveu uma mãe em um post em março de 2012 sobre sua filha de
12 anos.
Depois de informados sobre o que a Reuters descobriu, o Yahoo removeu
o boletim Adopting-from-Disruption, no ar havia seis anos. Uma
porta-voz afirmou que a atividade violava os termos de serviço da
companhia. Depois disso, a empresa retirou também outros cinco grupos
semelhantes dos quais tomou conhecimento pela Reuters.
Um fórum similar no Facebook, chamado Way Stations of Love, permanece
ativo, mas privado. Uma porta-voz do Facebook diz que a página mostra
que "a internet é um reflexo da sociedade".
Algumas das crianças "recolocadas" sofreram graves abusos. Uma menina
adotada da China e depois enviada para uma segunda família contou que
lhe fizeram cavar o próprio túmulo. Uma outra, uma menina russa, relatou
como um garoto numa casa urinou nela depois de fazerem sexo. Ela tinha
na época 13 anos e foi mudada de casa por três vezes em seis meses.
"Há centenas de pessoas procurando um novo lar para crianças", diz
Glenna Mueller, uma mãe adotiva que anunciou na internet seu filho de 10
anos.
Pais que anunciam as crianças online dizem ter opções limitadas. Nos
quadros de avisos, pais falam de filhos que se tornaram abusivos e
violentos, aterrorizando-os e também a outras crianças na casa.
"As pessoas se envolvem em uma situação da qual não podem sair",
afirma Tim Stowell, um pai adotivo que criou o grupo no Facebook no ano
passado.
Perigos desconhecidos
Como a "recolocação" privada costuma passar ao largo do governo, o único exame das famílias potenciais é feito pelos pais que querem se livrar das crianças. Isso eleva o risco de que elas possam cair em mãos de pessoas perigosas.
No grupo analisado pela Reuters, mais de metade das crianças era
descrita como tendo algum tipo de necessidade especial. Para cerca de 18
por cento havia a informação de que tinham uma história de vida que
incluía violência física ou sexual.
"Se você anuncia detalhes de coisas como o uso de drogas ou abuso
sexual, você está acenando uma bandeira vermelha" para os predadores,
comenta Michael Seto, um perito em abuso sexual de crianças, do Royal
Ottawa Health Care Group, do Canadá.
Em julho de 2006 -poucas horas depois de postar um anúncio oferecendo
um menino de 10 anos que havia adotado à margem do sistema de adoção do
governo dos EUA -Glenna Mueller se encontrou com Nicole Eason e
Winslow, amigo de Eason, na frente de um hotel perto da casa de Mueller
em Appleton, Estado do Wisconsin.
Lá, Mueller entregou o garoto, com uma nota dizendo que eles poderiam
cuidar dele. "Eu queria que essa criança fosse embora", diz Mueller,
uma ex-cuidadora de crianças.
Alguns meses depois, ela levou o menino de volta, após o serviço de
proteção à infância do Wisconsin lhe informar que poderia ser presa por
não ter envolvido as autoridades na transferência de custódia, segundo
seu relato. O menino lhe contou depois que havia passado a maior parte
do tempo em Illinois com Winslow.
Documentos da Justiça mostram que Winslow, então com 41 anos,
negociava pornografia infantil no período em que o menino estava com ele
no Illinois. Nos meses depois que o garoto se foi, Winslow passou um
tempo numa sala de chat onde se vangloriava de modo chocante de molestar
meninos e explicava como manter o abuso em sigilo: "Você só tem de
criá-los para pensar que isso é algo certo e para não contar a ninguém",
escreveu ele em uma conversa com um agente federal disfarçado.
Agora numa prisão federal em Elkton, no Estado de Ohio, Winslow
recusou pedidos de entrevista. O menino completou 18 anos dias atrás.
Seus pais adotivos não quiseram permitir que ele desse entrevista.




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